Silvia Chiarelli e a Escola Alecrim: Uma Trajetória de Educação Transformadora
Neste texto compartilho uma entrevista que fiz com Silvia Chiarelli, fundadora e diretora da Escola de Educação Infantil Alecrim, localizada em São Paulo. Esta conversa aconteceu em 2013, às vésperas do aniversário de 30 anos da escola. Recuperei este arquivo movido pela profunda tristeza e consternação causadas por sua morte inesperada, ocorrida em 9 de janeiro de 2024.
Antes de compartilhar a entrevista, acho importante dar um pouco do contexto que nos levou a nos tornar uma “família Alecrim”.
Nossa história com a Escola Alecrim começou em 2008, quando estávamos nos preparando para voltar a viver no Brasil depois de um período de sete anos morando em Lima, Peru. Retornaríamos a São Paulo no final daquele ano e uma das tarefas era a de buscar uma escola para nosso filho mais velho, Mateus, que na época estava com 7 anos.
Havia alguns desafios: ele teria de se adaptar a um novo cotidiano em um país que, embora fosse o seu de nascença, não era onde havia passado toda a sua primeira infância. Ele havia sido alfabetizado em espanhol e vinha de estudar em uma escola que tinha um foco grande em arte e em um modelo de educação mais vivencial. Não à toa chamava-se Leonardo da Vinci.
Buscávamos, portanto, uma escola com uma pegada semelhante e que, ao mesmo tempo, oferecesse um am biente acolhedor para o Mateus.
Uma amiga, Amanda Kartanas, nos apresentou à Alecrim quando ainda morávamos em Lima. Fizemos, também, umas pesquisas online e assim que voltamos ao país fomos fazer uma visita.
De imediato no encantamos com o pátio de areia e o cavalo branco que dominava o espaço comum da escola. Ver as crianças brincando com os pés no chão, rindo, se divertindo e interagindo naquele espaço nos deu certeza de que a Alecrim tinha algo de diferente.
Esta certeza foi fortalecida quando conversamos com a Telma Resende, na época coordenadora pedagógica da escola, que nos recebeu de maneira muito aberta e nos guiou na visita a todos os espaços.
Logo depois conhecemos a Silvia. O entendimento firme que ela compartilhou sobre o papel da educação para formar cidadãos conscientes e participativos nos encantou de imediato. Ela transmitiu uma grande paixão pelo que fazia, mas ao mesmo tempo foi muito lúcida sobre os desafios e limitações do processo educacional.
A Alecrim é a demonstração concreta de que estes desafios, longe de serem entraves, são um estímulo à inovação e à implementação de um projeto educacional transformador e libertador.
Mateus teve uma acolhida maravilhosa na escola, de onde saiu no 9o. ano, ao cumprir todo o ciclo do Fundamental I e II. Não temos dúvida de que ter estudado na Alecrim fez — e faz — toda a diferança na pessoa e no cidadão que ele é.
Lucas, nosso mais novo, começou no Infantil, saiu por um tempo, mas voltou à escola, onde cumpriu seus últimos anos de Fundamental II, em 2023, levando consigo os valores de convivência e participação ativa, que fazem a diferença da escola.
Em 2013, tive o privilégio de conhecer em mais detalhes a trajetória da Silvia. Conversei com ela em duas ocasiões para conhecer o processo de criação da escola e a sua trajetória com a educação.
É claro que a Alecrim é fruto de um sonho sonhado e realizado por muitas pessoas. Mas é igualmente verdade que a liderança, a inspiração e a resiliência trazidas pela Silvia fizeram toda a diferença.
Infelizmente a Silvia nos deixou, às vésperas de completar os 40 anos da Alecrim e de inaugurar a tão sonhada nova sede da escola, totalmente pensada para incorporar, no espaço físico, as aprendizagens de toda uma vida dedicada à educação participativa, libertadora e idealista.
Impossível descrever o impacto que a morte da Silvia causou em sua família, amigos e tantas pessoas cujas vidas foram — e continuam sendo — tocadas por ela.
Agora, sim, compartilho abaixo o conteúdo editado da conversa com ela, para ajudar a conhecer um pouco mais desta mulher educadora extraordinária.
O envolvimento com educação
Sou a filha mais velha de uma família de seis irmãos e segunda neta mais velha, com um monte de primos. Venho de uma família portuguesa muito gregária, o que talvez explique muita coisa.
Fiz sociologia e política e no último ano de faculdade estava em crise, sem saber que rumo tomar.
Não sabia bem o que fazer. Era 1979, começo da abertura política, ainda uma época muito feia. A possibilidade que existia para sociólogos, na época, era trabalhar em pesquisa e formular projetos que seriam engavetados. Eu não tinha a menor atração pela carreira acadêmica.
Um dia, tinha um trabalho para fazer na casa de uma amiga. Peguei uma carona com ela, que tinha de passar em um lugar antes de ir para casa. A gente entrou numa casa na [rua] Alves Guimarães e, enquanto ela resolvia o que a havia levado ali, fiquei parada na janela da edícula.
Veio um grupo de crianças acompanhadas de uma professora, sentaram-se em roda e começaram a conversar algumas coisas e a votar. Aí me dei conta de que eu não sabia onde estava. Era uma escola e minha amiga tinha ido deixar uns documentos para um curso de formação de educação para pequenos. Fiquei com vontade de fazer o curso de qualquer maneira também — infernizei a mulher da recepção e a orientadora me atendeu na hora.
Comecei a fazer o curso e enlouqueci. Não sabia que existia escola assim. A imagem da escola para mim sempre tinha diferente, de obrigações. Não sabia que existia tudo aquilo, que existia desenvolvimento infantil.
Na época, eu trabalhava fazendo tradução e, por isso, tinha uns horários livres. Comecei a me propor a ir todos os dias para lá [para a escola]. Havia um grupo lá dentro que queria fazer experimentação com relação à rotina. Eu me voluntariei para fazer este trabalho durante todas as tardes. Não consegui mais sair. Isto foi uma experiência transformadora. Não enxergava mais o mundo como antes.
Acabaram me chamando para trabalhar lá, com grupos de crianças de 2 anos. A escola se chamava Fralda Molhada, que deu origem à Caravelas, que depois se fundiu com a Oswald.
Minha trajetória de vida não apontava nesta direção [da educação] — foi algo muito forte como possibilidade. Neste sentido, lembro exatamente daquela cena, com a roda de crianças. Estavam discutindo algo normal do grupo e me dei conta, de repente, de que existe uma possibilidade de discutir, ouvir, se colocar, que é de outra natureza.
Eu tinha um projeto no último ano de faculdade — estava interessada no movimento anarquista em São Paulo. Tinha um professor que estudava o tema. Foi se tornando um projeto paralelo — eu estava muito interessada na coisa das autogestão nas indústrias — fui levantando informação sobre isso, essa coisa de várias pessoas decidindo.
Comecei a trabalhar — e, ao mesmo tempo, estudava que nem uma maluca — estava muito encantada com o tema como objeto de pesquisa.
A Fralda Molhada tinha quatro donas — e aí o grupo de professoras começou a questionar o modelo administrativo, que estaria desconectado da proposta pedagógica.
Eu estava feliz com esta condição de ser CLT, achava que a discussão sobre questão de poder não era a minha praia. Não queria ser “dona da escola”. Meio que fui pegando o bonde dessa história sem querer.
Decidiram, então, abrir a sociedade da escola e eu não fiquei.
Um dia, casualmente, encontrei um ex-colega que me disse que um professor da Unicamp estava interessado pelo meu projeto sobre anarquismo e autogestão.
Na época meu marido tinha recebido uma proposta de trabalho muito boa, que me permitiria tirar uns seis meses para me dedicar a este estudo, quem sabe tentar um mestrado. Mas de uma hora para outra a proposta caiu e ficamos os dois precisando arranjar um emprego rápido.
Não demorou e surgiu uma vaga de professor em outra escola — a Curió, que era, na verdade, uma associação de pais e monitores (como eram chamados os professores). Foi uma escola importante no começo dos anos 80 em São Paulo. Como era uma cooperativa, o espaço de experimentação era enorme. Comecei a trabalhar com crianças do grupo 5.
Aquela visão que me chacoalhou, da professora em uma roda com os alunos, mexeu com a minha vida para sempre.
Escolas Alternativas e novo modelo de educação
Acho que a educação faz muita diferença, porque é onde existe este espaço de troca, de “rua”. Acho que há experiências fundamentais nesta primeira infância que a escola pode proporcionar — formação de grupo, contato com o outro, possibilidade de explorações — que a escolaridade formal, da forma como era vista antes, não contemplava: era basicamente para aprender a ler e escrever, ou seja, ter “desempenho”.
É importante entender que o adulto não é o único portador do conhecimento — as crianças também têm suas verdades, ainda que provisórias.
Hoje em dia isso é ainda mais claro, com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a falta de espaços públicos, cada vez mais famílias com filhos únicos: a escola é o melhor lugar para produzir este espaço de sociabilidade. Vai além do que historicamente eram as escolas para crianças pequenas, que funcionavam basicamente como um espaço para “cuidar”.‘
Foi justamente para fazer frente a este modelo tradicional de escolas que surgiu o movimento de Escola Alternativas, que se opunham frontalmente e ideologicamente às chamadas escolas tradicionais. Este movimento me encantou, porque, como socióloga, sempre me lembrava do conceito de Max Weber, segundo o qual a escola é mais um instrumento de Estado, de manutenção de status quo.
Então quando vi aquela roda que falei antes, pensei logo que a escola poderia não ser apenas um instrumento de Estado. Isto de alguma maneira ficou claro para mim naquele momento.
O movimento das Escolas Alternativas vinha justamente para questionar isso. O contexto da época chamava a isso, estávamos nos últimos anos da ditadura militar e uma parcela da população queria algo assim. E não apenas em SP.
Com certeza, o momento político pedia mudanças. Minha geração não queria mais casamentos iguais aos de antes, a relação da mulher estava mudando, o espaço da criança estava se diferenciando, os casais estavam em busca de transformações.
A gente discutia muito o que era autoritarismo, autoridade. Era uma busca de muita coisa diferente.
A experiência com a escola Curió
A Curió seguia bem este modelo. Quando entrei nela funcionava como cooperativa entre pais e monitores (professores). Todo mundo igual, ganhando a mesma coisa.
Foi uma experiência muito importante, muito rica. Tinha um Conselho Pedagógico, formado por toda a equipe pedagógica, mais dois representantes dos pais, e um Conselho Administrativo, formado na maioria por pais com dois representantes pedagógicos. Já a Assembleia era formada por todo mundo.
Os pais, professores e alunos trabalhavam muito na escola de forma voluntária, nas noites, fins-de-semana etc.
Era tudo muito efervescente .
A Curió foi crescendo, chegamos a ter duas unidades, incluindo uma com berçário. Começou a ser uma experiência muito reconhecida, tanto pelo aspecto administrativo quanto pedagógico.
No começo, a gente vinha trabalhar todo fim de semana. Tinha muito prazer nisso. Depois, com o tempo, começou a haver cobranças — em função, principalmente, da diferenciação na dedicação das pessoas.
O sistema de financiamento da Curió era por cotas. Sempre tinha embate entre mensalidades versus salários, já que todos os custos eram compartilhados. Isto com o tempo gerava problemas.
Lembro de um episódio. Uma vez quebrou uma porta e não tínhamos verba para substituí-la. Não podíamos fazer nada porque tínhamos de esperar a assembleia para decidir sobre aumento de cotas para fazer frente a este custo. Com isto, existia o problema puramente administrativo, mas ninguém tinha realmente poder de resolvê-lo de imediato.
Por isso que, quando abrimos a Alecrim, decidimos que queríamos o mesmo modelo pedagógico da Curió, mas com uma estrutura administrativa que permitisse fazer o trabalho.
A criação da Alecrim
Fiquei na Curió de 1981 a 1983, quando ela fechou. Em 1984 abrimos a Alecrim. Ainda antes de a Curió fechar, fizemos um trabalho de análise institucional, para tentar salvar o projeto. Nesse processo, foi ficando um grupo mais coeso. Foi justamente este grupo de 11 pessoas que saiu para criar a Alecrim. Ao longo do tempo os sócios iniciais foram saindo para buscar seus próprios projetos pessoais e desde 1989 fiquei como única sócia.
Hoje penso que, na época, a gente não sabia como trabalhar com a ideia de “maioria”. A gente só sabia trabalhar com unanimidade. Tudo tinha de ser conversado e acordado por todos. Se alguém discordava tínhamos de seguir adiante até que todos estivessem de acordo.
Claro que o processo de dissolução da Curió não foi simples. Havia já um desgaste natural. Neste processo de autogestão muitos pais não podiam seguir acompanhando o dia-a-dia da escola e nós, professores, meio que fomos assumindo na prática a gestão. Chegamos até a procurar um advogado para tentar mudar a estrutura da cooperativa, mas daria muito trabalho. Por isso optamos por uma solução diferente.
Concluímos que queríamos abrir uma nova escola. E começamos a procurar um imóvel por aqui nesta região, de Pinheiros. A Curió ficava na [rua ] Ásia. O grupo se dividiu, então, em duas frentes: uma atuando na dissolução da Curió e outro, trabalhando o ideário da nova escola.
Uma das meninas do grupo passava em frente a este imóvel [onde ficava a Alecrim 1, na rua Amália de Noronha, em Pinheiros, SP] todos os dias. Um dia a porta estava aberta e ela pode olhar para ver como era aqui dentro. Imediatamente voltou para nós dizendo que havia encontrado o espaço para a Alecrim.
Idear a Alecrim foi um processo ininterrupto de reuniões. Como o processo de trabalho com as crianças, a gente meio que transpôs o que a gente já fazia na Curió. Ou seja, queríamos continuar a proposta pedagógica que acreditávamos, mas com uma estrutura administrativa que permitisse o trabalho.
A gente se reunia muito; era muita reunião. Discutíamos tudo, tudo. Tinha muito essa coisa do “somos iguais”, “nós que fazemos a escola”, a questão da equipe.
Para mim, particularmente, foi um aprendizado duro, de assumir uma direção, sem ser autoritária. Tinha medo de ser autoritária, de me sentir acima dos outros. Se fazemos a escola todos juntos, então como lidar com todos?
Tinha também um pouco de ingenuidade, já que efetivamente eu respondia juridicamente pela Escola.
O nome Alecrim
Havia várias sugestões de nomes. Acho que foi basicamente por causa da música, da cantiga, essa coisa do cheiro, do tempero. Ao longo do anos, eu ficava dizendo que já nascemos com hino, de uma tradição oral, essa coisa da cantiga.
Interessante é que a música não fala especificamente de tempero, mas, sim, justamente de uma touceira, uma moita comum que dá uma flor amarela. Um parente também falou que existe uma árvore, o alecrim-de-campinas, que tem raízes profundas, com copa forte.
Experiência de gestão
Tive um processo, que não foi fácil, de assumir a escola como minha depois que os últimos sócios saíram em 1989.
Concretamente não existe uma escola que se faça sozinha.
Bom, mas no começo a direção era coletiva — tinha só uma professora contratada, a Rita. Todas as decisões eram coletivas. Tinha divisão de trabalho. A Sara cuidava da gerência administrativa, eu e a Mara éramos orientadoras. Os outros estavam todos em sala de aula. A gente manteve durante um tempo estes plantões administrativos, para ajudar no controle de estoque, compra de material de limpeza etc.
A direção coletiva funcionava assim: discutíamos desde questões práticas, como a quantidade de detergente usada na limpeza da escola, até questões pedagógicas, tudo, o tempo todo, agora. Com o tempo, a gente dividiu as reuniões em duas, uma para tratar de temas pedagógicos e outra para questões administrativas.
Formação e comprometimento
A gente estudava muito. Essa moçada que agora faz curso de pedagogia sentiria a diferença. A gente estudava muito o Piaget, complicadíssimo de entender. Era um compromisso de saber o que a gente faz. Líamos coletivamente, fazíamos seminários internos, um preparava, outro preparava, e trazíamos as experiências práticas..
Claro, sempre havia umas pessoas mais interessadas que outras. Afinal, éramos um grupo com formação bem diversa, com gente de teatro, pedagogia, pedagogos, gente sem formação universitária, muita psicologia infantil. Tinha fase que era mais forte que a pedagogia. Eu e a minha amiga Fátima, formadas em sociologia e política.
Uma coisa que havia muito forte era esta questão do compromisso, mas tinha muito também esta coisa de observar a realidade, pesquisar a nossa prática, e voltar para entender. Por exemplo, sempre trabalhamos com as crianças muito a questão de limites — do “não gostei”.
Quando há uma situação de conflito entre duas crianças, sempre existe a tendência de ir para quem provocou o conflito. Mas a outra criança não pode ficar em uma situação de passividade, as duas partes têm de se colocar, de se posicionar. Mas como trabalhar isso? Falamos muito, discutimos bastante e daí chegamos ao “não gostei”.
Ou seja, vamos observar como se dão os conflitos entre as crianças e ver junto com elas como resolvê-los. Vamos ler o que outros autores já escreveram sobre isso, sobre como dar voz às crianças, a gente via, observava, voltava e contava tudo, discutia sobre isso. O “Não Gostei” surgiu nessa época.
Lembro de um depoimento que uma mãe deu em uma reunião anos atrás, falando sobre o impacto disso na vida de uma pessoa. Que tinham ido morar nos Estados Unidos e a filha dizia o “I didn’t like” e de como era importante que ela tivesse a capacidade de se posicionar. Agora, claro que não pode virar uma fórmula. Então, volta e meia voltamos a discutir sobre este tema.
O trabalho com as diferenças
Uma coisa que é uma parte integrante da nossa história, quando pensamos nas crianças, é a de trabalhar com as diferenças — sempre trabalhamos com essa tal de “inclusão” — tenho problema de usar este termo. Inclusão é um termo problemático porque coloca quem tem alguma necessidade especial como o único diferente e todos os outros como iguais. A gente não acredita nisso. A gente não acredita nisso de “incluir”.
A ideia sempre foi aceitar todas as possibilidades que se apresentassem para nós, com cuidados e critérios. Vamos aprender juntos, sempre desde o começo sabendo que algumas crianças precisam de ter algum apoio de especialistas de fora.
Ou seja, a questão de trabalhar com as diferenças sempre esteve no DNA da Alecrim, inclusive no modo de vestir, já que nunca adotamos uniforme.
Claro que a gente sempre conversava muito. Sempre teve espaço para se colocar os incômodos — deve ter tido no trajeto gente que não bancou e saiu.
Outra coisa interessante, e não proposital, é que começou a pipocar que a gente trabalhava muito bem com pais com crianças adotivas. Daí sempre houve pais com crianças adotivas aqui na Alecrim. Exatamente porque a gente teve sempre muita abertura para a diferença, isto facilitava.
Obediência e disciplina
Com certeza esta era, e é, uma visão ideológica de mundo. Ou seja, construímos uma linha de pensamento que mais se adequava com nossa visão. Por exemplo, “obediência” é uma palavra que não faz parte do vocabulário da gente — “indisciplina” também não.
O que define “ser comportado”? Uma criança que desde pequena é doutrinada a seguir regras, e de repente “se rebela”, é tão importante no seu processo de crescimento como ser humano. “Comportamento” acaba sendo igual a “enquadramento”, dentro de uma perspectiva adulta sobre as crianças, sobre o que elas devem, ou não, ser. Ou seja, o “bem comportado” vem atendendo a demanda dos pais, avós, tios.
Está no DNA da escola esta questão da não estigmatização de uns e outros. Isto embute a questão do trabalho com as diferenças. As pessoas têm facilidade de estigmatizar um e outro dentro de modelos comportamentais — fulano é o inteligente, o bom, o bagunceiro etc. A gente sempre pensou nisso. Se a gente sempre coloca como “ela é”, e não como “ela está”, a gente não dá chances para a criança de buscar formas de agir diferente. Isto, para nós, é tão natural que é até difícil falar sobre isso.
Tem muito isso de não fazer diferença — de não buscar explicações para determinados comportamentos. Aliás, a gente já vê isso nas novas conformações familiares. É o não pré-julgamento.
E isso tudo vem desde o começo, como ideário básico, à base de muito questionamento, em muitas reuniões, num processo de formação intensa.
E olha que em 1984 éramos muitos jovens, tínhamos entre 25 e 29 anos. É engraçado, de vez em quando penso, tínhamos a idade dos pais, muitos eram até mais velhos que nós.
A convivência na Alecrim
Pensando mais na educação infantil, é fundamental as crianças aprenderem a conviver. A opção por turmas pequenas é uma base da escola, para que os professores conheçam cada aluno, e que as crianças possam se colocar. Com grupos maiores fica difícil.
Essa ideia de que ter muita gente na classe vai levar a criança a ter mais amigos não é necessariamente verdade. Estar em uma turma de 32 alunos não quer dizer que a criança terá 31 amigos. Do ponto de vista do professor é muito mais fácil dar atenção a 10 ou 12 alunos do que a 32.
Acho que tem uma confusão — o prazer colocado acima de tudo, que muitas vezes a gente percebe em algumas crianças, isso é muito chato. Isso é uma coisa que muitos de nós temos sentido. Situações de conflito são oportunidades para conversar. Mas tem uma coisa do prazer, da não frustração, que é preocupante e que acaba repercutindo ao longo da vida, de uma angústia na hora de fazer um estágio, primeiro emprego, primeiras relações.
Uma geração que busca satisfação imediata, o prazer, e com um padrão tão alto, tudo fica difícil. Nossa vida não é um comercial de Doriana e é importante aprender a pisar no chão.
Parceria com as famílias
Sempre houve muita parceria com as famílias. Quando a gente criou a Alecrim, nos anos 80, era uma época muito difícil. Sempre teve muita gente muito parceira, acreditando. Era uma época de muito trabalho e nenhum dinheiro.
Quando os últimos sócios saíram, em 1989, não tínhamos dinheiro para nada. Havia muita inadimplência, até por conta da instabilidade econômica que se vivia.
A última sócia que saiu dizia para eu fechar a escola e eu dizia que não iria fechar, que se fechasse não conseguiria abrir outra. Teve uma época que eu era uma espécie de faz-tudo. Abri um grupo de manhã que tinha apenas um aluno. Ajudava a faxineira porque não podíamos contratar mais uma.
Todo mundo era muito jovem, com pouca experiência. A gente foi aprendendo na medida em que fazíamos e íamos revendo à medida que íamos construindo.
Mas era um momento muito especial da história do Brasil. Quando teve o comício das Diretas Já, a gente de manhã resolveu cancelar as aulas e ligamos para todo mundo. Dizíamos que era importante toda a equipe ir para o Anhangabaú. Depois, teve gente que questionou a decisão na reunião dos pais. Eu lembro que falava que naquele momento a aula era uma questão menor. Uns poucos pais reclamavam que nossa decisão havia sido autoritária porque eles tiveram de trabalhar. Eu dizia “que pena que você não foi…”
Ou seja, ter uma afinidade de ideias, de visão de mundo, com as famílias foi fundamental. Desde o começo, sempre houve esta afinidade de ideias com as famílias. Uma vem puxando a outra, daí vem conhecer a escola e se afina, ou não. Por exemplo, quando conhece a escola e diz que a questão da areia [no pátio] dá aflição. Sempre tem gente que reclama, que entende que a escola não é tão limpa, ou asseada. Mas, da nossa parte, é uma questão de escolha nossa, de proporcionar este espaço de convivência.
Acho que a característica das famílias da Alecrim inclui um pessoal mais questionador das questões vigentes, mais aberto, muitos profissionais liberais; sempre teve muitos artistas, gente que buscava um jeito mais leve de se viver.
A gente tem umas fases engraçadas. No fim dos anos 80, por exemplo, tinha muita gente de cinema. Depois veio o Collor, quase acabou com o cinema no Brasil e tivemos uma fase de muito artista plástico. Atualmente [em 2013] tem também, assim como muito fotógrafo, muito psicólogo, psicanalista,
Sempre tivemos uma característica do boca a boca. Nunca fomos muito boas de publicidade. Na época de crise, a gente chegou a fazer alguma publicidade, mas nunca tivemos muito retorno e muito do que tinha eram pessoas que chegavam aqui e não gostavam, porque não tinham o perfil que dialogasse com a proposta da escola.
O nosso público é o de defesa de ideias, não basta falar que é legal, tem de defender ideias. Esta é uma relação que alimenta o nosso trabalho.